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O dia em que o marketing saiu dos trilhos

A popularização da internet, de novos meios de consumo e de novas tecnologias transformaram departamentos de marketing. Hoje é possível rastrear o retorno sobre o investimento de cada centavo investido, mas este poder foi conquistado sem que suas implicações éticas tivessem sido propriamente debatidas. Estamos usando marketing digital da maneira correta para gerar valor para pessoas?

Tempo estimado para a leitura: 22 minutos

Publicado em 16/04/2019 e atualizado em 15/11/2021.

Atualizações 15/11/2021:

  • Na época da publicação deste post, o Facebook passava pelo encerramento de um julgamento no senado norte americano em função da sua participação no que ficou conhecido como o escândalo da Cambridge Analytica. Este episódio, somado a suspeita de interferência da Russia nas eleições dos Estados Unidos de 2016, levou a União Européia a aprovar uma série de regras para regular o uso e proteger dados de consumidores chamada GDPR, ou General Data Protection and Regulation. A GDPR, por sua vez, serviu de base para que vários países ao redor do mundo criassem suas próprias leis de proteção de dados, incluíndo o Brasil, que, em Agosto de 2018, sancionou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Em Agosto de 2021 a Agência Nacional da Proteção de Dados (ANPD), instituição criada para fiscalizar o cumprimento da LGPD, passou a ter autorização para atuar empresas em descumprimento da lei. A criação dessas leis trouxe impactos consideráveis para departamentos de marketing, que viram tecnologias de coleta de dados de consumidores se tornarem menos eficazes a medida que mecanismos de proteção de dados foram sendo incorporados;
  • Em Abril de 2021 a Apple lançou para dispositivos IOS 14.5 em diante o Apple Tracking Transparency (ATT), um recurso que garante a privacidade dos usuários em seu ecossistema ao bloquear uma série de rastreadores conhecidos, que só são desbloqueados mediante consentimento expresso. O Facebook foi prejudicado com a atualização. Sua plataforma de mídia impulsionada se tornou menos eficaz para impactar usuários de dispositivos IOS e mensurar o retorno sobre o investimento de ações para esta parcela de usuários.

Estou preocupado. A tecnologia que temos a disposição para trabalhar com personalização em massa e mensuração de esforços é fantástica, algo impensável até a geração passada de marqueteiros. Em poucos anos fomos de não saber o que era retorno e o que era desperdício da verba de marketing para saber o quanto gastar em cada canal para adquirir novos consumidores. As capacidades de personalizar e mensurar de forma granular trouxeram o ar de ciência para dentro de estruturas de marketing em organizações de todos os tamanhos e segmentos. Se toda essa evolução tecnológica trouxe mais dinheiro para organizações, o mesmo pode ser dito em relação a valor percebido por quem consome o que vendemos?

– Se empresas estão lucrando mais é porque as pessoas estão comprando mais, o que indica que estão gostando do que estamos vendendo. Certo?

Talvez. E é por não ter certeza que estou preocupado.

O que você vai ler agora é uma opinião. É a opinião de alguém que acredita que os grandes poderes concedidos ao marketing em tempos digitais (extensível as áreas de business intelligence, data science e o que mais presume comportamentos a partir de dados) estão desacompanhados de suas grandes responsabilidades em relação a forma como lidam com pessoas no mundo online.

Sistemas inteligentes: de números absolutos para probabilidades

Antes de mais nada, sou contratado para fazer com que mais e mais pessoas se tornem clientes dos produtos que vendem. Não importa muito como isso é feito, contanto que fique dentro do orçamento e que traga o retorno igual ou superior ao esperado. Se retornar menos do que o esperado, devo trazer justificativas e fazer ajustes na estratégia de marketing. Se retornar o esperado ou além, ótimo (e tapinha nas costas – good work). Minha crítica vai de encontro a essa definição do que faço. Não que eu não goste da área em que me especializei: fui atraído para as tantas possibilidades do mundo digital ainda na infância, como escrevi em outra ocasião. Acontece que ao longo dos anos fui descobrindo algo um tanto perigoso na forma como este trabalho é feito: reduzindo pessoas.

Não estou falando de algo novo. Quem nunca ligou para a central de atendimento de alguma empresa, navegou por um labirinto de opções dentro de uma URA para, no final, falar com um atendente que te pede para repetir tudo o que você acabou de falar para uma máquina? Ao final da ligação, o contato se resume a um número de protocolo, que, teoricamente, serve para alguma coisa. O objetivo da URA é agilizar o atendimento, entregando de antemão ao atendente as informações necessárias para a prestação do suporte, embora nem sempre pareça. Nosso ferramental para estudos comportamentais em sistemas digitais não difere tanto da forma como é usada a URA: usamos informações que as pessoas estão nos dando (e, diferente da URA, não sabem) para projetar sistemas de compra compatíveis com seus modelos mentais (leia tornar o processo de comprar “simples”, nosso equivalente de agilizar o atendimento). Ao final da compra, é gerado um número de pedido, que representa um negócio fechado entre duas ou mais partes. Assim como o atendente não sabe mais com quem falou, não sabemos mais quem comprou após o número de pedido ser gerado (não, saber quem é a persona não é a mesma coisa que saber quem de fato comprou). Aqui está a parte da mensagem que ganhará destaque neste post: projetar sistemas de compra compatíveis com seus modelos mentais.

A URA não te deixa nos nervos? Então sinta horror com esta stock photo de call center.

A URA não te deixa nos nervos? Então sinta horror com esta stock photo de call center. Fonte: Pixabay.

Estes sistemas de compras são feitos com uma série de ferramentas. O arsenal da pessoa marqueteira digital conta com mapas de calor, web analytics, gravação de sessões, questionários, polls e as métricas de uso do produto, para citar alguns (e amanhã surge alguma coisa nova para incrementar a lista). O ferramental é incrível, mas não é o bastante para nos ensinar como criar verdadeiras experiências um pra um. O que podemos fazer com tudo o que é extraído destas ferramentas é classificar pessoas pela sua probabilidade de pertencer a determinados grupos, com base em seu comportamento digital, e usar isso para criar algum mecanismo de personalização. Conforme extraímos informações dos dados levantados, vamos criando jornadas cada vez mais específicas, cada pessoa tendo sua experiência personalizada. As vezes dá certo.

Se os sistemas de outrora nos codificavam como números em seus largos bancos de dados, os de hoje combinam nossas representações numéricas com dados comportamentais, sempre quantitativos (já que também quantificam qualidades), e cospem probabilidades. Se você comprou um par de sapatos e 70% dos coleguinhas visitando a loja e que se parecem com você online comparam meias, você provavelmente vai comprar meias, então olha aqui esse par legal que eu te recomendo. Se você não comprou as meias que o sistema sugeriu, tudo bem, já que 7 em cada 10 pessoas parecidas com você supostamente comprariam. Sem esse sistema preditivo eu ia mostrar qualquer coisa na loja pra tentar fazer um cross sell com 50% de chances de sucesso, assumindo que não sei absolutamente nada sobre meus compradores.

Pares de meias que a Amazon me recomendou em uma visita a loja.

Pares de meias que a Amazon me recomendou em uma visita a loja. Fonte: Autor.

– Ainda não vi problema algum. Estamos sendo mais assertivos nas vendas, não tem nada de reduzir pessoas aí…

A não ser quando os outros 3 / 10 são negligenciados e quando nossas ferramentas de estudo de comportamento sugerem que podemos transformar negociações ganha-ganha com os outros 7 / 10 em negociações ganha-não-tão-ganha-assim. Exemplos:

– Usuários de Mac OS são mais propensos a pagar mais, vi aqui no Analytics. Vou configurar meu site pra mostrar um preço mais alto pra quem usar dispositivos da Apple.

– Esse mesmo ID de sessão entrou no meu site de passagens aéreas 4 vezes só hoje. Vou jogar o preço lá pra cima pra passar o recado: se não comprar logo o preço vai subir mais ainda.

Não vejo passar passa pela nossa cabeça que as respostas dadas para a pergunta “como fazer com que mais e mais pessoas se tornem clientes?” podem nos levar a adotar medidas um tanto questionáveis, deixando de lado a responsabilidade que vem com grandes poderes.

Vamos a um exemplo mais tangível. Amazon e seu recurso de compra com um clique. Se você fez uma compra na Amazon e deixou o site gravar seus dados de pagamento, os pessoais e endereços para cobrança e entrega você pode, literalmente, apertar um botão para concluir as próximas compras. É necessário apenas que você esteja logado para que o botão apareça. É cômodo. Fácil. Muito fácil. Fácil até demais…

Recurso de compra com um clique na loja da Amazon.

Recurso de compra com um clique na loja da Amazon. Fonte: Autor.

Não é difícil entender que o objetivo deste botão é aumentar vendas. E funcionou super bem, até porque a empresa pediu patente disso em 1999 e, por uns bons anos, teve exclusividade fazendo negócios desta maneira em parte do mundo. O que há de terrível neste botão? Ele é terrivelmente sedutor. Induz. Estimula o consumo por impulso e dá mais margem para compras por engano (gerando mais receita se o dono do dinheiro não tentar reavê-lo. Eu mesmo fui tentar reaver o valor pago em uma compra que fiz por engano e o processo não é tão lindo quanto o de comprar, pedi até ajuda ao Google). O botão cumpre exatamente o que veio ao mundo para fazer.

– As pessoas clicam porque querem.

Será mesmo? As pessoas estão comprando por vontade própria ou porque estamos usando nossos super incríveis conhecimentos em economia comportamental para antecipar ao máximo a sensação de prazer de adquirir algo, estimulando o lado emocional da compra em prol do racional? Ao vender algo para alguém, não damos atenção ao fato de que o comprador pode estar criando uma dívida ou alguém pode estar comprando em nome dele (como uma criança que pega o celular dos pais pra navegar na internet, vai parar na Amazon, pesquisa por um brinquedo e clica no botão de comprar com um clique). Ao facilitar a compra, aumentamos as margens para coisas como essas, seja de forma intencional ou não.

– Por quê eu deveria me importar com isso? Afinal de contas, ninguém está sendo forçado a entrar no meu site ou aplicativo e comprar. Além do mais, a fórmula é simples: + vendas = + meta batida = + lucro para a empresa = + PLR, bônus e dividendos pra todo mundo que fez mais pessoas comprarem. Yay!

#SóQueNão

O marketing “planta carnívora”

São muitas as formas pelas quais podemos “sacanear” as pessoas que entram em nossos sites e aplicativos. Do mesmo jeito que a tecnologia possibilitou a área de marketing digital se tornar um ás em mensurar para otimizar custos e retornos, ela abriu uma brecha para criar estratégias questionáveis para converter mais pessoas em clientes. Chamo estratégias de marketing que usam tais estratégias, como as mencionadas nos exemplos com usuários de Mac OS ou visitantes de sites de compra de passagens aéreas, de plantas carnívoras (poderiam ser chamados de ratoeiras, teias de aranha ou redes de pesca e arpões – aliás, estes dois últimos são termos usados em estratégias de marketing como inbound marketing e account based marketing, respectivamente). São estratégias que atraem consumidores para o interior de produtos e que, em dado momento… BAM! São devorados, esmagados ou fisgados por táticas que estimulam comportamentos por impulso, assim como moscas encontram seu fim no interior de uma planta carnívora.

Plantas carnívoras abertas.

Cada dentinho é uma tática obscura usada para estimular comportamentos. Fonte: Visual Hunt.

Mas não precisa ser assim

A Vivo tem uma campanha que está no ar enquanto escrevo este post intitulada “Tem hora pra tudo”. A campanha mostra diversos vídeos de jovens em situações do dia a dia sendo confrontados com a escolha de aproveitar o momento em que estão com quem está próximo ou ficar todo o tempo conectado ao smartphone. Os finais dos vídeos mostram os atores escolhendo desligar seus aparelhos e curtir o momento. Por quê uma empresa como a Vivo faria uma campanha dessas, estimulando as pessoas a ficarem longe dos produtos que ela vende (pacotes de dados e planos atrelados a aparelhos)?

Campanha da vivo tem hora pra tudo.

Fim de ano, match, casal, ninar e surf são alguns dos nomes dos filmes no YouTube. Fonte: Autor.

Curiosamente este não é um movimento isolado. Empresas como Google e Apple também nos querem menos tempo online para aproveitar a vida lá fora, o que implica em usarmos menos os produtos que estas empresas desenvolvem. Os pais e mães da atual geração, incluindo os do Vale do Silício que desenvolvem estas tecnologias, já tentam há algum tempo impor limites para o uso da tecnologia em casa, mas agora há empresas levando a questão para a rua.

A leitura que faço é esta: não adianta consumir desenfreadamente se isso está nos tornando escravos de produtos e serviços que não nos oferecem nada além de uma luz longínqua no fim de um túnel de desespero e solidão criado, em parte, por estas mesmas tecnologias que estão em nossos bolsos. As empresas que fazem essas campanhas pensam em via dupla, imagino: de que adianta continuar vendendo estes produtos se eles estão ajudando a criar um estilo de vida que não é saudável? É melhor conscientizar as pessoas quanto ao uso adequado para criar modelos de negócio saudáveis para ambas as partes. O caminho alternativo é o setor de tecnologia ser forçado a vender produtos em encartes de cigarros, com mensagem fortes na parte traseira das embalagens alertando para os riscos do uso prolongado de seus produtos (ou só do uso mesmo).

Estamos vendo iniciativas de um movimento que, acredito eu, vai só aumentar conforme aprofundamos o debate sobre o papel das tecnologias em nossas vidas. Diante destas iniciativas eu me pergunto: será que podemos criar algo parecido dentro dos departamentos das organizações nas quais trabalhamos e nas comunidades profissionais das quais fazemos parte? Será que podemos aproveitar algo destas campanhas para ajustar a mentalidade de como se faz marketing?

Entra o marketing girassol

O tema comum entre as iniciativas apresentadas é o pensamento em via dupla, buscando criar um ambiente próspero para um relacionamento saudável entre as duas partes (empresa e consumidor) e não apenas uma delas. E como isso se aplica ao marketing? Se o marketing planta carnívora é aquele que estuda o momento oportuno para atacar, o que estou chamando de marketing girassol é aquele que busca se relacionar ganhando a confiança das pessoas para que se sintam livres e seguras dentro de nossos produtos, tendo espaço para ponderar escolhas de forma racional e sendo donas de suas próprias experiências de navegação, assim como uma abelha navega livremente entre girassóis. Pense nisso: enquanto a planta carnívora se alimenta dos insetos que pousam ao seu redor, a abelha que consome o pólen de um girassol o leva para a colmeia e também para outras flores em um processo chamado de polinização, que estimula o nascimento de novos girassóis. Esta é uma legítima relação ganha-ganha.

Campo de girassóis.

Abelhas consumindo o pólen de girassóis. Fonte: Pixabay.

Não, isto não é um framework, método, metodologia ou processo novo

De siglas, processos, métodos e metodologias estamos bem fartos. Acredito que não basta mais do que uma percepção diferente sobre o que fazemos e para quem fazemos. Não é necessário mudar o arsenal de ferramentas ou criar novos processos. Basta que a discussão sobre o impacto do que fazemos exista em qualquer mesa de reunião junto com o compromisso de deixar na mão das pessoas impactadas, e apenas delas, o controle sobre a experiência que querem ter dentro dos produtos e serviços que criamos.

O marketing girassol é pautado em ao menos três valores: honestidade, transparência e confiança. Por quê estes valores são importantes para uma organização? As pessoas estão cada vez mais desconfiadas do que estamos fazendo. O pior é que estão com razão, já que discussões como a deste post não são tópicos relevantes em palestras, faculdades e blogs de tecnologia. O diálogo sobre ética no desenvolvimento e na distribuição de produtos e serviços é algo marginal, enquanto a dificuldade em alcançar nosso público alvo para ofertar algo só cresce, a medida que as pessoas se tornam mais e mais desconfiadas a tudo o que não é possível ver, ouvir e sentir. Confiança não é algo opcional em um ambiente online cercado de desinformação: é o mínimo do mínimo para estabelecer qualquer relação com as pessoas.

Aos demais tópicos. Honestidade: cumprir com o que diz. Se você se comprometeu a criar uma experiência de navegação e compra livre de armadilhas para o cérebro, crie uma experiência de navegação e compra livre de armadilhas para o cérebro. Compromisso gera confiança, ainda mais se for público e rastreável, o que nos leva ao ponto da transparência. Transparência é se relacionar com os visitantes e compradores olhando nos olhos, quando ambas as partes estão diante de uma negociação confiantes de que nada está sendo escondido. Apenas com transparência podemos nos aproximar de potenciais compradores com discursos de venda.

O desafio de vender ideias

Como se apresenta uma proposta de fazer negócios que escapa do modelo planta carnívora para uma empresa? Se a empresa não comprar a ideia de pesar discussões éticas na produção do que vende, de cima a baixo e de um lado para o outro, existem pelo menos outras duas formas de tais discussões passarem a existir nas salas de reuniões: iniciando movimentos internos ou por força maior. Iniciar movimentos internos significa rodar iniciativas piloto que englobem práticas honestas e transparentes durante a criação ou melhoria de um produto, e usar os dados coletados para argumentar que é possível alinhar boas práticas de negócios e lucro. Força maior significa que a demanda por transparência, honestidade e confiança vem da comunidade a qual a empresa serve. Estamos vendo este filme hoje com o Facebook. Desde que a empresa foi acusada de ser usada como canal para influenciar as eleições presidenciais nos Estados Unidos pela Cambridge Analytica, ela entendeu que precisa levar a sério a forma como coleta, processa e distribui dados de seus mais de 2 bilhões de usuários ativos. O próprio Zuckerberg veio a público para dizer que o Facebook estará empenhado nos próximos anos a combater os males que assolam a rede, mesmo que a empresa fique estes anos lucrando menos. No início de 2019, o Facebook anunciou uma série de mudanças na rede para que ela seja não só divertida, mas que seu uso não prejudique o bem estar das pessoas. Se vai funcionar? Ainda não dá pra saber, mas o episódio mostra como honestidade, transparência e confiança são valores cada vez mais inegociáveis para consumidores.

Zuckerberg se explicando para as instituições de justiça dos Estados Unidos.

Zuckerberg se explicando para as instituições de justiça dos Estados Unidos. Fonte: Bloomberg.

Ganhando dinheiro com blogs

Vamos a um exemplo do que não é e um do que é marketing girassol. Você tem um blog que gera receita e, para este negócio específico, métricas de engajamento são importantes para estimar o retorno do tráfego deste blog. Você quer que as pessoas fiquem mais tempo interagindo com seu conteúdo para aumentar a exposição a anúncios, cuja receita irá patrocinar a infraestrutura de hospedagem e lhe remunerar. Você tem um estímulo financeiro que pode facilmente lhe seduzir a colocar toda sorte de mecanismos que estimulem certos comportamentos, como cliques em certas áreas da página, a fim de aumentar sua remuneração. Por outro lado, seu público é formado por conjuntos de bits que navegam para lá e para cá e com quem você não interage ou consegue se assimilar. Seu incentivo social de promover conteúdo enfraquece a medida que os boletos chegam na sua casa. Que mal algumas janelas popup, banners animados na barra lateral ou mensagens nos cantos da tela vão causar, certo? O conteúdo continua lá, é só clicar ou tocar a tela duas ou três vezes a mais que é possível ler os textos na íntegra.

Alguns cliques ou toques a mais provavelmente não vão fazer os dedos de ninguém cair, mas acontece que, aos poucos, as pessoas estão se vacinando antes de entrarem nos perigosos terrenos da internet (as plantas carnívoras de plantão estão perdendo seu charme) e os buscadores de internet estão cada dia melhores em munir pessoas com coisas relevantes para elas. Mais informadas e diante de acesso curado a bons conteúdos, chegar até seu blog se torna um desafio e tanto para quem busca pelo o que você tem a oferecer. Os problemas não param quando um visitante entra em no seu site, no entanto. O Google diz que 53% das visitas mobile deixam um site que leva mais de 3 segundos para carregar, e a maioria das buscas feitas no buscador do Google são mobile. Se seu blog ainda está vivo e um visitante insistente esperou mais do que 3 segundos para sua página carregar, ele ainda vai decidir, pelos próximos segundos, se o conteúdo do blog é o que ele realmente busca. São segundos preciosos e é o que você tem para se mostrar uma fonte de informação confiável. Uma dezena de anúncios irrelevantes pulando na cara do visitante pode fazê-lo voltar ao Google, sinalizando ao buscador que seu conteúdo não é relevante (uma planta carnívora que deixou a mosca escapar antes da abocanhada fatal). Anúncios são chatos 99,7% do tempo (fonte: vozes da minha cabeça), mas se são tão importantes para que seu blog sobreviva, você tem ao menos três opções para continuar usando-os sem espantar seus visitantes:

  • Explicar aos seus visitantes que, apesar da inconveniência dos anúncios, eles são necessários para que o blog continue vivo e oferecendo conteúdo de qualidade;
  • Buscar tornar a experiência de consumo de anúncios pouco ou nada conflitante com a experiência de consumo do conteúdo (aqui tem exemplos bons, diga-se de passagem);
  • Criar modelos de negócios que permitam com que seus leitores mais fiéis patrocinem seu trabalho, seja por doações ou uma assinatura.

Eu não sou especialista em blogs, mas diria que nenhuma das opções é muito animadora. Quem vai colocar dinheiro em um blog desconhecido que só foi encontrado por acaso em uma busca no Google? Pelo contrário, é provável que seus visitantes se juntem as massas crescentes de usuários de ad blocks ou recuem ao primeiro sinal de uma paywall, sinalizando claramente que não querem ter sua experiência de navegação tomada por distrações irrelevantes.

Paywall impedindo a leitura do conteúdo.

Paywall impedindo a leitura do conteúdo. Fonte: The Times.

Há quem saiba ganhar dinheiro na internet com blogs, e, se for pra chutar como fizeram isso, diria que estas pessoas não fizeram mágica: criaram conteúdos relevantes para determinados temas que sejam indexáveis por buscadores de internet, hospedaram estes conteúdos em servidores e aplicações que não tardam a carregar, e construíram sua autoridade junto a outros nomes de relevância nos mesmos temas. Um trabalho árduo e demorado, como deve ser se o objetivo é ter a confiança de quem o encontra. A confiança se estabelece a medida que os visitantes retornam ao site, refinando palavras chave até encontrá-lo pelo nome na internet ou recebendo sua newsletter. Quem chega neste ponto não tem dúvidas sobre a honestidade do trabalho: ele cumpre com o propósito de levar conteúdo relevante para este público fiel e daí floresce a transparência: uma exposição não forçada e voluntária ao que você vende que pode melhorar a vida de quem compra (soa como inbound? Pois acho que é isso o que a Hubspot quis dizer ao popularizar a estratégia. Nem precisava ter usado plantas carnívoras e girassóis para definir o conceito…).

Pense que este exemplo de blog não se difere de outros modelos de negócios. Como consumidor, eu adoro o Mercado Livre. Pra mim é um exemplo de plataforma digital riquíssima em conteúdo. Confio no Mercado Livre graças aos vários indicadores de confiança expostos na plataforma (que o site faz questão de deixar visível). Sempre que compro algo no site chega do jeito que vi no anúncio (honestidade), geralmente antes do primeiro dia previsto para chegar, e nunca tive que pedir pra trocar. Por fim, me sinto a vontade para receber as recomendações e promoções anunciadas no marketplace (transparência). O conteúdo aqui não é um texto de blog, mas produtos de uma rede de vendedores que, ao longo dos anos, foram construindo suas reputações no marketplace enquanto foram bonificados com o selo “Está entre os melhores vendedores do Mercado Livre”. O papel do Mercado Livre é gerar esse ambiente de honestidade, transparência e confiança que tranquiliza compradores e vendedores que nunca se viram, mas que se sentem seguros em comprar e vender um do outro.

Selo de confiança de uma loja no Mercado Livre.

Selo de confiança de uma loja no Mercado Livre. Fonte: Autor.

Blogs de sucesso, sites como o Mercado Livre e tantos outros produtos digitais que amamos não fazem estudos comportamentais buscando maximizar oportunidades de negócio? Não tenho dúvida de que fazem, assim como não tenho dúvida de que não abrem mão da autoridade e confiança que possuem entre seus visitantes para tentar qualquer tipo de tática que acabe com esse relacionamento frutífero. Creio ser esta a diferença entre empresas como essas e as que buscam apenas induzir determinados comportamentos online. Entre no site do Smash Magazine e abra algum artigo. Além do conteúdo ser de alta qualidade, a experiência de leitura é agradável e os responsáveis fazem questão de informar como fazem uso de anúncios na plataforma. Isto é honestidade. É a soma da confiança, honestidade e transparência que uma relação comercial entre duas ou mais partes acaba em um final feliz. De inconveniências, anúncios passam a ser verdadeiramente relevantes, dispensam a necessidade de um ad blocker e remuneram o projeto para que ele continue sempre vivo, como um bom girassol que fornece nutrientes para colmeias inteiras de abelhas e que, por sua vez, carregam o excedente pelo ambiente onde vivem, estimulando o nascimento de novos girassóis.

O dia em que o marketing voltar aos trilhos

Estou preocupado, mas tenho esperança. Sob o pretexto de otimizar conversões, induzimos pessoas a tomarem ações que possivelmente optariam por não tomar se soubessem o que teria do outro lado de um formulário. Como profissionais de marketing digital, temos nossa parcela de culpa em criar ambientes digitais ausentes de honestidade, transparência e confiança. Existe uma massa cada vez maior de consumidores antenados no mundo digital, vacinados para navegar neste ambiente tóxico em busca de pessoas e marcas com quem possam se relacionar sem desconfiança. Algumas empresas tomaram para si a responsabilidade de construir essa confiança e, embora sejam poucas, mostram que estão comprometidas em despoluir o campo minado que se tornou a internet, com seus tentáculos prontos para entrar no bolso de consumidores e arrancar uns trocados com cliques acidentais, visualizações indesejadas e jornadas de compra cheias de armadilhas para o cérebro.

É possível sim criar modelos de negócio que não dependam exclusivamente de táticas e otimizações de conversão para crescer, mas é fundamental que exista uma relação de confiança entre pessoas e empresas, que só será possível a partir do dia em que pararmos de cultivar plantas carnívoras e começarmos a cultivar girassóis. É a partir deste dia que a responsabilidade voltará a acompanhar os grandes poderes que foram dados a nós, marqueteiros e marketeiras digitais (e analistas de dados, e profissionais de business intelligence, data science e as demais áreas que presumem comportamentos a partir de dados). Se temos nossa parcela de culpa ao produzir parte das tantas armadilhas que rondam a internet e seus modelos de negócios questionáveis, podemos nos redimir capitaneando o processo de devolver a confiança para os tantos transeuntes deste mundão online. Podemos usar os poderes que nos foram concedidos para incitar movimentos internos nas organizações das quais fazemos parte em prol de conquistar uma verdadeira relação de confiança com as pessoas. O caminho alternativo é que a demanda venha por força maior e, na pior das hipóteses, tenhamos que nos explicar diante das instituições de justiça de nosso país.

E então, aceita o desafio?

Bora criar produtos responsáveis!