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empreendedorismo

Negócios de impacto socioambiental x negócios repetíveis e escaláveis

Existe o primeiro setor, formado pelas instituições governamentais, o segundo setor, formado pela iniciativa privada, e o terceiro setor, formado por organizações sem fins lucrativos. Uma parte do segundo setor tenta se desvincilhar e ir para o terceiro, formando o o chamado setor 2.5. O que são estas empresas e como se diferem do segundo setor tradicional?

Tempo estimado para a leitura: 13 minutos

Publicado em 02/05/2019 e atualizado em 17/11/2021.

Os conceitos de empresa e startup não são novos, apesar de a definição exata de startup ainda ser um tanto subjetiva. O que parece ser novo, no entanto, é o questionamento acerca do propósito existencial de muitas destas organizações, que crescem enriquecendo a seus donos sem que haja partilha de frutos deste crescimento com todos os agentes que as ajudam a crescer. É com base nesta pauta que estamos testemunhando o nascimento de organizações com modelos de negócios centrados na ideia de crescer junto com a comunidade a qual pertencem, e fomentar o que se chama de capitalismo consciente. Neste post, vou tratar de distinguir modelos de negócios tradicionais e os de impacto socioambiental, evidenciar as características de negócios de impacto socioambiental Brasileiros e responder a pergunta: os modelos de negócio cujo norte é o impacto socioambiental irão redefinir a forma como empresas e startups conduzem negócios e entregam valor?

Empresas e startups

Para começar, vamos distinguir os termos organização, negócio, e empresa:

  • Uma organização é um conjunto de um ou mais indivíduos que se juntam em prol de alguma causa;
  • Um negócio é um ambiente de troca de valor por remuneração;
  • Uma empresa é a representação jurídica de uma organização e seu(s) modelo(s) de negócios.

E o que é uma startup? Steve Blank e Eric Ries, figuras conhecidas no mundo do empreendedorismo, definem essas organizações de formas diferentes. Eric Ries diz que startups são organizações que buscam produzir e entregar produtos e serviços em ambientes de extrema incerteza enquanto Steve Blank diz que startups são organizações que buscam modelos de negócios repetíveis e escaláveis. A definição conjunta também é usada: startup é uma organização que busca modelos de negócios repetíveis e escaláveis em ambientes de extrema incerteza. Startups são organizações temporárias. Embora a cultura organizacional permaneça em grande parte, a estrutura organizacional é feita para encontrar modelos de negócios que tenham determinado alcance e potencial de expansão. Uma vez que tal modelo de negócios seja encontrado e registrado legalmente, a startup passa a ser uma empresa.

O que são negócios de impacto socioambiental?

O conceito de negócio de impacto foi definido por Muhammad Yunus, criador do primeiro banco de micro crédito do mundo. Ele define esse tipo de negócio como sendo um dirigido por uma causa social. No Brasil há uma definição mais específica, escrita na carta de princípios para negócios de impacto no Brasil. De acordo com a carta, negócios de impacto socioambiental são empreendimentos que têm a missão explícita de gerar impacto socioambiental ao mesmo tempo em que produzem resultado financeiro positivo de forma sustentável.

Para criar uma linha entre o que é e o que não é um negócio desta natureza, Yunus criou sete princípios que os norteiam:

  • O objetivo de negócio é erradicar a pobreza ou outro problema que ameace populações (como a falta de acesso a educação, saúde, acesso a tecnologias e meio ambiente) e não maximizar o lucro;
  • Deve ser sustentável econômica e financeiramente;
  • Investidores recuperam apenas o que foi investido. Não há dividendos;
  • Quando o valor do investimento recebido é pago de volta, o lucro fica com a empresa para reinvestimento e expansão;
  • Deve respeitar a diversidade de gêneros e o meio ambiente;
  • Colaboradores são remunerados conforme práticas de mercado com boas condições de trabalho;
  • Deve ser feito com prazer.

E a carta de princípios para negócios de impacto no Brasil define quatro princípios:

  • Compromisso com a missão social e ambiental;
  • Compromisso com o impacto social e ambiental monitorado;
  • Compromisso com a lógica econômica;
  • Compromisso com a governança efetiva.

Há três pontos em comum entre as definições apresentadas: compromisso com a geração de impacto socioambiental, independência financeira e compromisso da governança destas empresas em manter a continuidade do impacto positivo que a empresa gera para o mundo.

Ecossistema de negócios de impacto. Eles estão entre a iniciativa privada e as organizações sem fins lucrativos.

Ecossistema de negócios de impacto. Eles estão entre a iniciativa privada e as organizações sem fins lucrativos. Fonte: Carta de princípios para negócios de impacto no Brasil.

Startups não nascem com objetivos sociais em mente?

Assista alguma aula ou leia algum artigo sobre criação de startups e você vai aprender, provavelmente no conteúdo introdutório, que deve encontrar um problema para ser resolvido. Deve ser algum problema real que tormente as vidas de um número considerável de seres vivos. Você deve dar uma solução para este problema sob a forma de algo que o resolva ou o diminua. Este algo é um produto ou um serviço e o sistema de entrega deve estimular a geração de negócios.

O que faz de uma startup uma startup é este ambiente propício para negócios. Por definição, modelos de negócio de startups devem ser repetíveis e escaláveis, e essas duas palavras definem o propósito existencial deste tipo de organização. Ser repetível significa que o modelo de negócio pode ser replicado sem grande esforço financeiro ou de mão de obra. Ser escalável significa que o modelo de negócio consegue absorver demandas cada vez maiores sem grande esforço financeiro ou de mão de obra. Startups são associadas a empresas de tecnologia – embora nem sempre seja o caso – dado que repetição e escala só são possíveis com automação, o que por sua vez requer tecnologia.

As métricas de importância para startups estão ligadas a sua capacidade de crescer. Estas métricas nem sempre possuem relação com impacto socioambiental. Números como lucro e potencial de retorno do investimento são mais importantes do que o impacto que geram porque startups costumam buscar recursos externos para acelerar seu crescimento. Quem investe em startups, por outro lado, busca fazer investimentos em organizações com potencial comprovado de dar retorno financeiro acrescido de participação no lucro. A capacidade de crescimento de uma startup é também moeda de troca para atração de profissionais capacitados, que encontram a possibilidade de crescer junto com a empresa e ter sua própria parcela da organização.

Se uma startup nasce com um objetivo social, ele vai ficando em segundo plano conforme a organização vai descobrindo maneiras de crescer e lucrar cada vez mais, remunerando seus donos e acionistas.

E como nascem as organizações com modelos de negócios de impacto socioambiental?

Compromisso com a geração de impacto positivo – isto é, tendo participação ativa na construção e revitalização da comunidade da qual faz parte – não é só o que defendem as definições deste tipo de negócio, mas é o ponto de partida para empreendedoras e empreendedores que se prontificam a construí-los. Assim como startups, organizações de impacto socioambiental nascem para resolver problemas previamente identificados e a entrega da solução também estimula a geração de negócios. As semelhanças terminam aí. A natureza dos problemas atacados por organizações de impacto socioambiental necessariamente conversa com algum dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável promovidos pela ONU, o que indica que modelos de negócios oriundos destes problemas precisam se ajustar a realidade de pessoas que podem não possuir acesso a serviços mínimos como água potável, saneamento básico, energia elétrica ou moradia adequada.

Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Fonte: ONU Brasil

A premissa de geração de impacto positivo define a maneira como a organização se enxerga no mundo e como agentes externos a enxergam, incluindo investidores. A relação de investidores com negócios de impacto socioambiental deu origem ao termo Venture Philanthropy, uma forma de patrocínio a organizações de impacto socioambiental que conta não só com recursos financeiros, mas com tempo para apoio ao desenvolvimento do negócio e acompanhamento de métricas que definem impacto socioambiental positivo.

Embora o foco de organizações com negócios de impacto socioambiental seja gerar impacto positivo elas não pertencem ao terceiro setor, que compõe as organizações sem fins lucrativos, pois buscam lucro em seus modelos de negócio para não depender exclusivamente de doações. Estes negócios também não estão no segundo setor, dado que a comunidade beneficiada participa de conselhos administrativos e da gestão da organização. Tiago Mattos, fundador da escola de metodologias criativas Perestroika e autor do livro Vai Lá e Faz, defende a ideia de que negócios de impacto socioambiental – ou negócios de valor compartilhado, como ele define – são negócios de um setor 2.5.

Mapa de organizações do primeiro, segundo e terceiro setores.

Mapa de organizações do primeiro, segundo e terceiro setores. Fonte: European Venture Philanthropy

As diferenças entre negócios de impacto socioambiental e negócios tradicionais também podem ser percebidas ao longo do ciclo de vida das organizações. Faço essa distinção em três estágios:

  • Nascimento: modelos de negócios tradicionais entregam soluções para quem paga mais e modelos de negócios de impacto socioambiental buscam incluir populações marginalizadas em sua forma de fazer negócios;
  • Escala: o crescimento de modelos de negócios tradicionais se dá em função de retorno financeiro e o crescimento de modelos de negócios de impacto socioambiental se dá em função do impacto positivo para a comunidade que atende;
  • Amadurecimento: modelos de negócios tradicionais criam uma bolha com três pilares: organização, funcionários e consumidores e modelos de negócios de impacto socioambiental mantém a comunidade a que servem envolvida no conselho e na gestão do negócio.

O panorama de negócios de impacto socioambiental no Brasil

Desde 2017 a Pipe Social, organização que mapeia negócios de impacto socioambiental no Brasil, divulga o Mapa de Negócios de Impacto Social, um documento que evidencia e detalha negócios desta natureza no Brasil. O estudo está em sua segunda edição na data de escrita deste post e é publicado a cada dois anos. Usarei os achados do estudo para quantificar os negócios de geração de impacto positivo no Brasil. A amostra do estudo é formada por empresas que se cadastraram no portal da Pipe Social durante o período de chamada para participar do levantamento.

Farei uma leitura do estudo sobre as perspectivas de geração de impacto social positivo, independência financeira e compromisso da governança com a geração de impacto social positivo.

Sobre o compromisso do negócio com a geração de impacto social positivo

Critérios para elegibilidade de organizações como sendo de impacto socioambiental.

Critérios para elegibilidade de organizações como sendo de impacto socioambiental. Fonte: Pipe Social

Somando as organizações que não definiram indicadores de medição de impacto e as que definiram mas não mensuram, 80% da amostra de 1002 negócios pesquisados ainda não avaliam com critérios objetivos se o que produzem gera impacto socioambiental positivo. É válido presumir que as mesmas métricas usadas para mensurar o desempenho de negócios tradicionais sejam adotadas por negócios de impacto socioambiental no Brasil.

Sobre o compromisso da governança com a geração de impacto social positivo

Tornar o compromisso com a geração de impacto social positivo público, rastreável e auditável é um caminho para mensurar esforços neste sentido. Apenas 2% da amostra contratam uma empresa para auditorias. Outro indicador é a participação da comunidade em conselhos administrativos e na gestão das organizações. 18% dos negócios pesquisados alegaram que a comunidade beneficiada possui papel no conselho e na gestão das organizações e 53% alegam consultar a comunidade beneficiada, embora esta não tenha participação em conselho ou gestão corporativa. Parece haver bastante espaço para trabalhar a ideia de tornar público o compromisso da gestão em criar negócios centrados na ideia de geração de impacto positivo.

Sobre o compromisso com a independência financeira

Faturamento e fontes de recurso dos negócios de impacto socioambiental pesquisados.

Faturamento e fontes de recurso dos negócios de impacto socioambiental pesquisados. Fonte: Pipe Social

Chama a atenção o fato de que quase metade das organizações pesquisadas não possui faturamento. O estudo aponta que 21% das organizações pesquisadas estão em estágio de organização de seus modelos de negócio. Há um total de 67% de organizações que ainda não descobriram como resolver um problema social de maneira economicamente sustentável. A principal fonte de recursos sai do bolso das pessoas empreendedoras.

Estágios de desenvolvimento dos negócios de impacto socioambiental no Brasil.

Estágios de desenvolvimento dos negócios de impacto socioambiental no Brasil. Fonte: Pipe Social

Com base na amostra é válido concluir que o próprio conceito de negócio de impacto socioambiental precisa de mais visibilidade no Brasil, dado o fato de uma parcela tão grande de organizações não conseguirem mensurar o que entregam em termos de impacto positivo. A independência financeira é uma barreira para organizações de impacto, assim como para startups. Elas recorrem aos mecanismos já conhecidos por empresas e startups para captação e o estudo vem apontando, desde sua primeira edição, que não há muitas opções de investimento específicas para negócios de impacto socioambiental em seus estágios iniciais de vida.

Fontes para captação de investimento. Negócios de impacto socioambiental não dispõem de fundos específicos.

Fontes para captação de investimento. Negócios de impacto socioambiental não dispõem de fundos específicos. Fonte: Pipe Social

A comunidade de negócios de impacto socioambiental no Brasil

Outro objeto de estudo da pesquisa foi a presença e o tamanho da comunidade em torno de negócios de impacto socioambiental no Brasil.

Aceleradoras, incubadoras e outros programas de fomento ao desenvolvimento de negócios de impacto socioambiental criados nos últimos 5 anos no Brasil.

Aceleradoras, incubadoras e outros programas de fomento ao desenvolvimento de negócios de impacto socioambiental criados nos últimos 5 anos no Brasil. Fonte: Pipe Social

Um ponto de destaque do estudo foi a regionalização dos atores de disseminação de negócios de impacto, tanto para além de sul e sudeste quanto por periferias e dentro de universidades. Difere da ideia de polos de startups como os de São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis e Recife.

O governo Brasileiro já reconheceu a existência desta categoria separada de negócios. Em 2017 foi criado o ENIMPACTO (Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto), uma organização que envolve a administração pública, o setor privado e a sociedade para facilitar o desenvolvimento e o investimento em negócios de impacto socioambiental. Desde a organização do grupo, o governo conseguiu criar um fundo de investimentos específico para negócios de impacto socioambiental e ampliou programas de aceleração e incubação, além de criar contratos de compra específicos para estes negócios que facilitem o comércio com o governo (B2G).

Capitalismo consciente

Muhammad Yunus, em seu livro Building Social Business, não defende a extinção de modelos de negócios tradicionais. Ele entende que ambos os modelos podem coexistir e que organizações com modelos de negócios tradicionais podem, em conjunto com organizações de impacto socioambiental, construir soluções que alcancem mais pessoas do que uma das partes conseguiria sozinha. Tiago Mattos defende que toda organização deveria ter claro qual o seu papel no mundo. Ele escreve que “não faz o menor sentido você ter uma empresa que não ajude o mundo a ser um lugar melhor”. Na visão do autor, negócios de impacto socioambiental estão sendo criados por pessoas empreendedoras que estão redesenhando a forma como o capitalismo funciona. Yunus segue a mesma linha de raciocínio ao afirmar que o capitalismo tradicional cria a pobreza, mas que é possível ressignificar o capitalismo para incluir aqueles que hoje não fazem parte deste sistema.

Negócios com propósitos sociais e negócios tradicionais podem andar de mãos dadas, contanto que negócios sociais mantenham sempre vivo seu compromisso com a geração de impacto social positivo e negócios tradicionais tenham um propósito existencial que vá além do dinheiro. São demandas importantes não só para as organizações, mas para o consumidor do século XXI, como já escrevi.

Organizações que já estão na estrada há algum tempo podem ainda apoiar o nascimento e o desenvolvimento de negócios de impacto socioambiental não só com recursos financeiros, mas com o conhecimento que possuem sobre crescimento repetível e escalável. O estudo da Pipe Social mostra que estamos nos anos iniciais do desenvolvimento de negócios de impacto socioambiental e que há muito a aprender. Participar deste processo de maturação pode fazer com que empresas tradicionais e startups repensem seu papel no mundo e como podem conciliar a geração do lucro com o impacto social positivo. No final do dia, toda a sociedade tem a ganhar.

Leitura complementar

Bora fazer o bem!